Andar oscilante, panturrilhas de tamanho anormal e dificuldade de movimentação: Guilherme tinha apenas três anos quando os primeiros sinais começaram a aparecer. Gradualmente, atividades comuns como caminhar ou correr se tornaram um desafio. Foram inúmeras visitas ao médico, até que a mãe, Meire Cristina de Sousa, finalmente recebesse o diagnóstico: Distrofia Muscular de Duchenne.
Tudo começou em 2017, quando Guilherme, hoje com 13 anos, teve o diagnóstico definitivo. Meire relembra que o primeiro indício notado foi um crescimento anormal da panturrilha. Desde então, iniciou-se uma ‘peregrinação’ em clínicas médicas e hospitais até que, aos sete anos, um médico ortopedista fornecesse o diagnóstico preciso de Guilherme.
“Descobri que o Guilherme era portador de Duchenne quando ele tinha sete anos. Iniciamos o tratamento em Campo Grande e há três anos começamos a tratá-lo em São Paulo, com uma médica especialista em Duchenne. Essa médica, inclusive, perdeu um filho pela doença”, explica a mãe.
O que é a Distrofia Muscular de Duchenne?
A Distrofia Muscular de Duchenne é uma doença neuromuscular genética caracterizada como um distúrbio degenerativo progressivo e irreversível no tecido muscular, que acarreta perda dos movimentos. Além disso, quando agravada, a doença pode atingir toda a musculatura esquelética e desencadear problemas cardíacos e respiratórios.
Na época em que recebeu o diagnóstico, Guilherme já havia completado sete anos. Isso excluiu a possibilidade do único tratamento capaz de ‘frear’ a progressão da doença, o Elevidys, medicamento avaliado em R$ 15 milhões, que só pode ser ministrado em crianças com até seis anos.
Por isso, o tratamento se deu por meio de terapias e remédios de uso contínuo, o que não dispensa a necessidade das medicações de alto custo.
“Guilherme já passou da idade para tomar o Elevidys. Hoje, ele anda na ponta dos pés, sente muitas dores e teve uma pequena alteração cardíaca, por isso, preciso também do Eteplirsen, um remédio de uso contínuo que custa em torno de R$ 5 milhões”.
O Elevidys consiste em uma terapia de transferência de genes de dose única para infusão intravenosa. Ele foi desenvolvido para tratar a causa da doença, promovendo a produção de microdistrofina especificamente nos músculos esqueléticos.
Já o Eteplirsen auxilia o corpo a produzir uma proteína chamada distrofina, essencial para a estabilidade e função dos músculos. A distrofina fortalece a estrutura do tecido muscular, sendo crucial para o desenvolvimento muscular adequado, ou seja, a medicação ajuda a retardar a progressão da perda de força.
Condição herdada de mãe para filhos
Quatro anos mais tarde, em 2021, Meire recebeu um novo diagnóstico: Gael, seu filho mais novo, também era portador da Síndrome de Duchenne. A descoberta do que originou a síndrome foi ainda mais desoladora. Após exames, a mãe descobriu que ela própria era portadora, transmitindo assim a condição de forma hereditária aos seus filhos.
“Quando Gael nasceu, a médica orientou a realizar todos os exames para avaliar se ele poderia ter a síndrome. Com oito meses, descobrimos que ele também tinha Duchenne. Fiz alguns exames e descobri que eu era portadora, por isso, eles herdaram, e decidi fazer laqueadura”.
Meire explica que a distrofia muscular de Duchenne é uma doença genética, mas não necessariamente hereditária. A condição decorre de uma mutação do gene DMD, ligado ao cromossomo X e, por isso, pode ser herdado de mãe para filho. Essa desordem recessiva afeta predominantemente meninos, cerca de 1 em cada 3.500 nascidos vivos do sexo masculino.
Atualmente, não existe cura para a síndrome de Duchenne, e o controle dos sintomas ocorre por meio de fisioterapia e medicamentos de uso contínuo. No entanto, o alto custo desses medicamentos os tornam inviáveis, obrigando famílias a recorrerem aos meios judiciais para garantir acesso aos tratamentos.
Corrida contra o tempo
“É uma luta contra o tempo, pois a doença é progressiva e degenerativa”. Desde o diagnóstico, Guilherme tem sido submetido a tratamentos contínuos, incluindo sessões de fonoaudiologia e fisioterapia, além de tomar nove medicamentos diariamente para auxiliar no funcionamento do coração e outras funções do organismo.
No entanto, para maior eficácia do tratamento, Guilherme necessita de Eteplirsen, avaliado em cerca de R$ 5 milhões e usado para tratar, mas não curar, alguns tipos de Duchenne.
Quanto a Gael, devido ao estágio inicial da síndrome, ele ainda não apresenta sintomas, o que permite o uso do Elevidys, que apesar do alto custo (R$ 15 milhões), é o único medicamento com potencial de conter a progressão da doença. O maior entrave, contudo, é que o Elevidys ainda não foi regulamento pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Mas a luta de Meire ganhou novos desdobramentos. Em abril deste ano, a Justiça determinou que a União fornecesse o medicamento milionário para o tratamento de Enrico, uma criança de 5 anos de Minas Gerais, também diagnosticada com Duchenne. Após uma ordem bancária de R$ 17,2 milhões do Ministério da Saúde para a compra do Elevidys, a advogada da família, Daniela Ávila, confirmou a aplicação do medicamento para Enrico em território brasileiro.
“O remédio que Guilherme precisa, Eteplirsen, custa em torno de R$ 5 milhões e é essencial para retardar a progressão da doença. Já para o Gael, há esperança de cura se ele receber o Elevidys. Apesar do custo de R$ 15 milhões, é dose única. Por isso, entrei com um processo judicial para obter acesso a ele”, afirma.
Enquanto processos acumulam, mães travam batalhas judiciais
Para conseguir acesso às medicações, Meire deu entrada em diversos processos judiciais na esfera estadual e federal, contudo os trâmites caminham de forma lenta. De início, a mãe procurou o TJMS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul), mas por se tratar de medições de alto custo, os processos agora tramitam na DPU (Defensoria Pública da União). Sem a regulamentação da Anvisa, o processo para aquisição do Elevidys segue parado.
No caso de Guilherme, a mãe ainda espera uma decisão favorável que garanta o fornecimento do Eteplirsen, um dos remédios de alto custo mais demandados por ação judicial no SUS. Somente em 2019, a União destinou R$ 8.065.439,650 para aquisição do Eteplirsen. Enquanto isso, Guilherme segue na lista de espera.
“Algumas medicações consegui pelo SUS outras ainda espero pela justiça. Inclusive teve um medicamento, o Entrest que mesmo com a liminar judicial, não me deram. Tive que entrar com outra ação. Os trâmites das medicações de alto custo são mais demorados, estava parado desde outubro, só agora atualizaram. Falta agilidade nesses casos graves”, lamenta a mãe.
Assim, Meire recorreu às redes sociais, onde criou vaquinhas e campanhas de conscientização sobre a Duchenne, com o intuito de pressionar o Governo Federal e a Anvisa para acelerar a aprovação do Elevidys no Brasil, junto a mães de todo o país. Em meio a isso, ela ainda se dedica a fazer doces para complementar a renda e arcar com os custos dos tratamentos dos filhos.
“Essas campanhas são essenciais para sensibilizar as pessoas sobre a realidade dessas condições e a necessidade de políticas públicas que garantam o acesso igualitário a tratamentos eficazes, independente da condição socioeconômica das famílias afetadas”, afirma.
Em 30 de abril, a Comissão de Saúde da Câmara dos Deputados promoveu audiência pública, em Brasília, para debater o processo de autorização do Elevidys, por parte da Anvisa, para o tratamento da distrofia muscular de Duchenne.
MS contabiliza 14 mil processos por fornecimento de medicações
A história de Meire, Guilherme e Gael é mais uma entre as inúmeras que tramitam na justiça brasileira. Dados do painel do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) apontam que entre 2020 e 2024, o TJMS contabilizou 14.562 processos relacionados ao fornecimento de medicamentos no SUS (Sistema Único de Saúde).
Os dados processuais revelam que, apenas em 2024, Mato Grosso do Sul registrou 8,4 mil processos relacionados à saúde. Dentre eles, a maioria, cerca de 5,47 mil, corresponde ao fornecimento de medicamentos. Em seguida, aparecem processos relacionados a atendimentos médicos e hospitalares, totalizando 3,58 mil.
Poder Judiciário garante o acesso à saúde…
A Constituição Brasileira determina que a saúde é um direito de todos, e que o Estado, por sua vez, tem o dever de garantir sua manutenção a todos que aqui vivem e não possuem condições de fazê-lo. Nessa perspectiva, o Poder Judiciário desempenha um papel crucial na garantia do acesso a medicamentos para a população brasileira que necessita de tratamentos disponibilizados ou não pelo SUS (Sistema Único de Saúde).
No entanto, devido às falhas do SUS na distribuição de medicamentos, muitas vezes ele não consegue fornecer todos os medicamentos necessários para o tratamento dos cidadãos que precisam de terapias não incluídas nos padrões do sistema, como Gael e Guilherme.
Por isso, o Poder Judiciário assegura o direito ao acesso à saúde por meio de decisões judiciais, quando não é possível chegar a um consenso entre as partes envolvidas. Nesses casos, a intervenção judicial se torna necessária para resolver todas as questões relacionadas a determinado tratamento.
Grande parte dos processos judiciais relacionados à saúde passa pela Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul. Eni Diniz, defensora pública e coordenadora do NAS (Núcleo de Atenção à Saúde), explica que o órgão atua em diversas ações, como fornecimento de medicamentos, vagas hospitalares, exames, consultas e até distribuição de fraldas e insumos.
“Nossa maior demanda é por cirurgias ortopédicas, mas também há muito pedido de medicamentos. A fila de cirurgias ainda é muito grande e a oferta de vagas no SUS municipal não atende essa demanda. Às vezes, a pessoa fica aguardando por dois, três anos e aí precisa judicializar”, ressalta.
…Mas entraves burocráticos dificultam resolução dos processos
Conforme a defensora, é dever do governo do Estado, via SES (Secretaria Estadual de Saúde), fornecer insulina aos pacientes que necessitam. A legislação estadual determina o fornecimento não só de insulinas, mas também de insumos como fitas de medição. No entanto, a jurisdição estadual muitas vezes argumenta que a responsabilidade é da União, porque algumas insulinas estão listadas no Rename (Relação Nacional de Medicamentos Essenciais).
“A judicialização nesses casos é alta, muitas vezes por entraves administrativos ou por disputas de responsabilidade. Isso, contudo, não exime a responsabilidade do Estado, que tem uma lei local obrigando o fornecimento desses insumos”, afirma Eni.
O painel indica ainda o alto número de processos relacionados ao fornecimento de leitos, com 2,36 mil ações judiciais, além de 2 mil processos relacionados a transferência de UTI (Unidade de Terapia Intensiva).
Outro dado que chama atenção é que 88 processos estão ligados a atendimentos e medicações para pacientes oncológicos. Eni explica que isso ocorre porque as medicações para tratamento de câncer são de alto custo.
“Há vários medicamentos oncológicos de alto custo, por isso, a Defensoria frequentemente judicializa contra o Estado para obter esses medicamentos, já que não se enquadram na categoria de doenças raras. Alguns medicamentos estão incorporados ao SUS, mas não são dispensados, enquanto outros necessários para os pacientes, precisam ser obtidos judicialmente”.
Em âmbito nacional, mais de 520 mil processos judiciais referentes à saúde estão em tramitação nos tribunais brasileiros. Enquanto isso, casos como o dos irmãos Guilherme e Gael seguem à espera de resolução.